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domingo, 25 de outubro de 2009
O Grande Mentecapto
(Fernando Sabino)
Fernando Sabino é autor contemporâneo
dos mais importantes. Dono de um estilo inconfundível em que ressalta o
extremo cuidado com a linguagem, é um especialista em criar situações
cômicas de profunda beleza plástica. Sua capacidade descritiva faz com
que o leitor, além de se deleitar com a complicação da trama, consiga
visualizar a cena criada pelo narrado. Sua obra é extensa e inclui
principalmente crônicas e contos. Seus romances - O Encontro Marcado; O
Menino no Espelho; O Grande Mentecapto - são fruto de profunda
preparação e artesanato impecável. Por isso mesmo cresce a cada dia a
importância de sua obra no panorama da atual Literatura Brasileira.
Nesse romance de 1979, o Autor elabora uma trama com a nítida intenção
de homenagear as pessoas humildes, simples e puras. Já na epígrafe da
narrativa, "Todo aquele, pois, que se fizer pequeno como este menino,
este será o maior no reino dos céus.". nota-se a vontade de elevar os
puros, os inocentes e os ingênuos.
Na linha da novela picaresca - vide o Dom Quixote de La Mancha, de
Cervantes -, em que o personagem desloca-se por um espaço indefinido, à
cata dos conflitos, para resolvê-los heroicamente, Viramundo vive uma
seqüência de peripécias acontecidas no Estado de Minas Gerais,
contracenando com personagens dos mais variados matizes e
comportando-se sempre como o bem-intencionado, o puro, o ingênuo
submetido às artimanhas e maldades de um mundo que ainda não está de
todo resolvido. Andarilho, louco, despossuído, vagabundo, idealista.
Marginal em uma sociedade que não entende e em que não se enquadra, o
Viramundo instaura um sentimento de ternura e de pena por todos aqueles
que, em sua simplicidade, sofrem o descaso, a ironia, a opressão e a
prepotência.
Como o Quixote, com a sua amada Dulcinéia, e como Dirceu, com a sua
adorada Marília, Viramundo põe em suas ações tresvariadas a esperança
de realizar-se emocionalmente com a sua idealizada e inalcançável
Marília, filha do governador de Minas Gerais. Sua ilusão alucinada é
reforçada pelos pseudo amigos que o enganam com falsas cartas de amor e
incentivam sua loucura mansa e seu sonho impossível.
Viramundo conhece que o mundo é uma grande metáfora e o trata com
idealismo como se ele fosse real. Consertar o mundo é sua missão e ele
se dedica a ela com toda a força de sua decisão, não se deixando abalar
pelo insucesso, pelo ridículo, pela violência ou pelo vitupério. Em seu
delírio, o irreal e o real andam de mãos dadas, não há a separação
entre o concreto e o abstrato, e por isso o herói não se abala física
ou emocionalmente com nada com que se defronte: não teme os fortes, os
violentos; não se assusta com fantasmas e nem com ameaças; aceita
resignadamente o que a vida lhe reserva.
Percebe-se aqui que, além de pícaro, nosso herói pode ser considerado
como bufão, pois jacta-se tolamente sobre supostas capacidades de
resolver as injustiças e o desacerto do mundo. Não tem qualquer ligação
definitiva com a vida; não assume compromissos; é desprezado e usado
por aqueles com os quais se relaciona.
A pureza deste aventureiro é a crítica à hipocrisia das relações
humanas em um mundo que perdeu o sentido da solidariedade e da
fraternidade. Sua alegria ingênua e desinteressada opõe-se ao jogo
bruto dos interesses malferidos, ao conservadorismo e à arrogância.
Porta-voz dos loucos, dos mendigos, das prostitutas, o Viramundo
conhece os meandros da enganação e da falsidade dos políticos e dos
poderosos.
A crítica à mesmice, ao chavão e ao clichê faz-se pela presença da
paródia a muitos autores e personagens historicamente conhecidos.
Viramundo não era conhecido, mas termina por criar fama em razão dos
casos incríveis em que se envolve. Sob a aparência imunda de um mendigo
está um sujeito com cultura geral incomum. Sua fala de homem conhecedor
surpreende e sua experiência de ex-seminarista e ex-militar confunde e
admira aqueles com quem convive. Sua esquisitice e suas respostas
prontas a todas as indagações fazem com se acredite tratar-se de um
louco manso e inofensivo.
Outro aspecto interessante é a exploração da temática da loucura. O
Autor parece convidar o leitor a uma reflexão sobre a origem e o
convívio com a idéia da excentricidade do comportamento humano.
Viramundo pode ser considerado um louco, mas quem não o é? O que a
sociedade considera loucura? Como classificar e tratar os indivíduos
que atuam em dissonância com aquilo que se considera normalidade? A
sociedade mostrada no romance está povoada de tipos que comumente
chamamos de loucos: os habitantes de Mariana agem desvairadamente ao
tentar linchar Dª. Peidolina; o diretor do hospício é mais estranho que
os próprios internos do manicômio; o capitão Batatinhas é absolutamente
alienado. Há no decorrer de toda a narrativa o questionamento da
fragilidade dos limites entre a sanidade e a loucura.
No limiar da consumação de sua caminhada, Viramundo mudou. No começo
era idealista e cheio dos cometimentos da paixão. Manteve-se assim
durante muito tempo até encarar a dura realidade da convivência humana.
A série de acontecimentos em que figura como perdedor física e
emocionalmente faz com que se desiluda. Descobre que as cartas de amor
eram falsas; os amigos eram falsos; sua crença era falsa. Por todo lado
só encontra sofrimento, opressão, hipocrisia. Está só, absolutamente
só, e a solidão é tudo que lhe resta.
Seu fim é emblemático. Morre vitimado pelo próprio irmão. Paga por um
crime que não cometeu. A intertextualidade bíblica é evidente: compara
a trajetória e o comportamento de Viramundo com a Via-Sacra do Cristo,
em todos os sentidos, inclusive no sacrifício final.
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